Destaque de abertura da edição das 13 horas na rádio Renascença (30-11-2017): “Mário Centeno é candidato à liderança do Eurogrupo”. Seguem-se declarações do primeiro-ministro, António Costa. Igualmente no mesmo dia, também à mesma hora, noticia a Antena 1: “O primeiro-ministro confia na candidatura de Mário Centeno à presidência do Eurogrupo”. Na edição online do Público (30-11-2017), avança o jornal: “Centeno é candidato à presidência do Eurogrupo”. No seu site, adianta o Diário de Notícias: “Centeno é candidato ao Eurogrupo. Carta já seguiu”. A notícia de abertura do Jornal da Tarde, da RTP1, aborda a mesma questão: “Mário Centeno é mesmo candidato a presidente do Eurogrupo. O Governo português oficializou a candidatura e António Costa diz que Centeno tem tudo para ganhar (…).”
A Renascença noticiava: “A crise dos refugiados rohingya está a marcar a recepção ao Papa em Daca, no Bangladesh (…).” (30-11-2017; terceira notícia do alinhamento da edição das 13 horas). Na mesma linha, escrevia o Expresso online (30- 11-2017): “Depois de visitar a Birmânia, o Papa Francisco chegou hoje ao Bangladesh onde vai encontrar-se com refugiados rohingyas, a minoria muçulmana perseguida pela junta militar birmanesa.”E, na RTP1, no bloco informativo do período de almoço, a visita do Sumo Pontífice era apresentada deste modo: “O Papa pede à comunidade internacional medidas eficazes para resolver a crise dos refugiados da etnia rohingya (…)” (décima oitava notícia do alinhamento do Jornal da Tarde).
Estas duas questões que têm vindo a marcar a actualidade nacional e internacional no decurso dos últimos dias e, de modo particular, o acompanhamento mediático das mesmas oferecem-nos pistas acerca de linhas de rumo que a comunicação social tende a seguir para apresentar a informação ao público. Dir-se-ia que são práticas enraizadas e que são sinónimo de uma socialização profissional eficaz face a uma significativa homogeneização do tratamento jornalístico, como discutiremos adiante.
No caso da candidatura de Mário Centeno à liderança do Eurogrupo, com o destaque dado às declarações do chefe de Governo e do Presidente da República, revelam bem a relevância que a comunicação social concede à actividade político- partidária. O que remete, desde logo, para a relação entre as fontes de informação e os jornalistas. Especificamente, a acção das fontes oficiais. Sem entrar numa discussão
alongada sobre os processos de newsmaking, Leon Sigal (1973) escreveu que o conteúdo das notícias depende daquilo que as fontes dizem e do tipo de fontes consultadas (oficiais e não oficiais). Sigal aborda a existência de três tipos de canais informativos: 1) canais de rotina (que vão desde os acontecimentos oficiais aos press- releases e comunicados); 2) canais informais (passando por encontros de associações cívicas às informações de outras organizações noticiosas) e 3) canais de iniciativa (que deriva da vontade dos jornalistas, como no caso de um pedido de entrevista). O autor considera que as fontes de informação dominantes (governo, partidos e tantas outras organizações com peso social) têm um peso muito significativo nas notícias e que outros que são “desconhecidos”, para ganharem algum tipo de visibilidade, recorrem a actos espectaculares, o que os coloca numa situação de desvantagem, pois tenderiam a ser vistos como menos responsáveis que as fontes oficiais.
Sejam responsáveis governamentais, representantes de intersindicais, grupo de pressão, entre outros, há aqui uma grande capacidade destes agentes no desempenho do seu papel de “promotores de notícias” (Molotch e Lester, 1974). Estas entidades recorrem, por exemplo, a conferências de imprensa, encontros com militantes e apoiantes, paradas e jornadas parlamentares para marcar uma posição e influenciar a agenda pública, beneficiando de contactos privilegiados com os media, que serve os dois lados: a ânsia que o poder tem em ser notícia e a necessidade dos jornalistas obterem informação que satisfaça as suas necessidades, se possível em primeira mão. Em bom rigor, os exemplos atrás referidos podem ser categorizados, de acordo com aquilo que Daniel Boorstin referiu nos anos 1960, como pseudo–acontecimentos, na medida em que não se tratam de acontecimentos espontâneos, eles surgem porque foram planeados. Tratam-se, muitas vezes, de situações criadas para serem cobertas pelos media, sendo que o seu sucesso mede-se pela amplitude do tratamento mediático e a sua capacidade de fazer passar os enquadramentos desejados.
Claro que estes desenvolvimentos são indissociáveis de uma crescente profissionalização das fontes de informação. As empresas, as organizações sociais e culturais, mas igualmente os agentes políticos, estão a apostar cada vez mais nesta vertente na expectativa de comunicar melhor com o seu público e apoiantes. No seu estudo sobre o papel dos assessores de imprensa no período da governação de António Guterres, o jornalista e investigador Vítor Gonçalves refere no seu livro Nos Bastidores do Jogo Político que a maior parte desses profissionais que trabalharam com os ministros nesses executivos provinham das redacções de órgãos de comunicação social
(ou, pelo menos, tinham um bom capital de experiência nessa área). Para além disso, Vítor Gonçalves menciona a empatia pessoal com esses representantes políticos como motivo central para aceitarem as funções de assessores de imprensa, bem como a cessação da sua actividade no executivo aquando da exoneração do titular da respectiva pasta. Contudo, não deixa de ser significativo, como o próprio assinala, o poder dos responsáveis da comunicação governamental no timing e forma de apresentação das políticas públicas.
Estes episódios sobre a candidatura de Mário Centeno à presidência do Eurogrupo e a visita do Papa ao Bangladesh, entre outros tantos que poderíamos mencionar (sendo, nomeadamente, dois dos que têm sido mais falados nos últimos dias), evidenciam a capacidade de agendamento (agenda-setting) dos media no mundo contemporâneo. Que até pode parecer um chavão, mas expõe claramente a dimensão que o discurso jornalístico assume na nossa vida quotidiana, no ensejo de alcançarmos algum tipo de orientação num mundo em rápida mudança.
Já não se trata aqui de uma forma de poder absoluto que a comunicação mediatizada teria na determinação dos comportamentos dos indivíduos, de acordo com um modelo pavloviano, tal como há décadas atrás chegou a ser profetizado. Ou seja, assistimos a uma redescoberta do poder do jornalismo, na medida em que esta possibilidade de agendamento procura evidenciar um determinado tipo de efeitos cumulativos a curto prazo que resultam da abordagem de assuntos concretos por parte da comunicação social. Dito de outro modo, os media têm a capacidade não intencional de agendar questões que são objecto de debate público em cada momento (McCombs e Shaw, 1972). A corrida de Mário Centeno para a liderança do Eurogrupo e a deslocação do Sumo Pontífice ao Bangladesh são dois dos temas que estão na ordem do dia e que a classe jornalística tende a ver como dos mais importantes num determinado momento. Como que numa espécie de “olhar para o mundo com os mesmos olhos” para nos dizerem o que de mais significativo se passa à nossa volta.
Este efeito de agendamento parece reflectir-se, num primeiro momento, na definição daquilo que constitui ou não um tema da actualidade e, num segundo momento, no estabelecimento da hierarquia e prioridade do mesmo. Investigações mais recentes abordam que os relatos jornalísticos tendem não apenas a dizer aos cidadãos quais são as principais matérias do momento, mas também sobre como pensar acerca das mesmas. Se a visita do Papa a esse país asiático constitui, por si só, um acontecimento importante, a forma como a crise dos refugiados rohingya foi destacada
pelo chefe da Igreja Católica e o seu poder de influenciar a acção das autoridades locais é-nos apresentada como um sinal do sucesso ou fracasso de Francisco nessa deslocação, não obstante tudo o mais que possa ter dito e feito nesse território.
Numa das investigações que realizou sobre as aberturas dos telejornais nos três canais generalistas (RTP1, SIC e TVI) durante seis meses (de Setembro de 2000 a Março de 2001), Brandão (2002) indica que, por esta ordem, os “Acidentes e Catástrofes”, os assuntos de “Estado/Política Internacional” e os “Problemas Sociais” foram as três categorias temáticas dominantes referentes às aberturas dos jornais televisivos nessas estações. Sem esquecer o peso do “Desporto”, vulgo futebol, que surge em quarto lugar neste estudo. Por outro lado, temas como a saúde, ciência e cultura apresentam valores bem mais reduzidos no que toca à capacidade de se constituírem como assuntos que abrem os telejornais. Outras investigações posteriores do autor tendem a corroborar estas conclusões. Sinal da afirmação de uma informação – espectáculo, cada vez mais influenciada pela ditadura das audiências…
Se há assuntos que irrompem de forma repentina e que são totalmente imprevisíveis, alcançado uma grande atenção mediática, como os acidente e catástrofes, os blocos informativos estão largamente marcados pelas agendas político-partidárias do momento, pela divulgação da acção dos poderes oficiais, pelo lado rotineiro e burocrático de apresentação da informação, por um constante reciclar dos pseudo- acontecimentos, garantindo que é por um reforço da comunicação que os poderes instituídos procuram ultrapassar a sua crise de representatividade.
Ainda quanto à visita do Papa ao Bangladesh, é certo que há uma enorme atenção com repercussão nas capas de jornais, nos telejornais e na Web. Este tipo de deslocações, nomeadamente as viagens do Papa ao estrangeiro, com todo um conjunto de iniciativas que estão programadas e pela preparação que requerem, têm sido algo de estudo e entram na designação daquilo a que Daniel Dayan e Elihu Katz, em Media Events: The Live Broadcasting of History, apelidam de acontecimentos mediáticos.
Para os autores, os acontecimentos mediáticos não se tratam, de acordo com a sua terminologia, de assuntos que são alvo de uma reportagem típica de um telejornal. É mais do que isso. Casos de acontecimentos mediáticos (que acentuam o carácter performativo dos media), ou de telecerimónias como também tem sido tratado em Portugal, são o casamento de Carlos e Diana, os Jogos Olímpicos ou a ida do homem à Lua. Uma viagem do Papa pode ser entendida à luz daquilo que é um acontecimento mediático: não são situações, por norma, concebidas pelos media, uma vez que alguém
os organizou, embora a televisão acabe por os difundir; são situações pré-planeadas, não sendo por isso espontâneas ou inesperadas; são acontecimentos transmitidos em directo, com as audiências a par do guião ou do que se pode esperar; e uma comunhão das pessoas em frente dos ecrãs numa partilha comum de experiências. Apesar das diferenças e nos momentos próprios no que toca à sensação vivida no contacto com essas situações, ressalva daqui a ideia que os media são capazes de determinar os assuntos que estão no topo da agenda e sobre os quais podemos ter uma opinião.
Há um ponto aqui que não queremos, todavia, deixar de abordar e que estas duas notícias a que temos aludido bem destacam: a ênfase que os diferentes meios de informação dão aos mesmos temas. Parece que, apesar da proliferação dos meios, há sempre matérias e ângulos da notícia que são divulgados por todos. Uma espécie de “jornalismo de matilha”, onde todos vão atrás um dos outros.
Ignacio Ramonet (1999) foi um dos que chamou para a atenção que deveríamos dar a essa problemática, referindo-se ao mimetismo mediático. Segundo Ramonet, o mimetismo é uma tendência que se tende a apoderar dos media, impelindo-os a cobrir um acontecimento (qualquer que ele seja) sob pretexto de que os outros órgão de informação estão a dar-lhe importância. Crítico desta visão, considera que esta imitação exacerbada provoca um efeito de bola de neve: ao falarem cada vez mais de um assunto, estes profissionais convencem-se que o assunto é indispensável e central, necessitando dar-lhe mais cobertura, tempo e recursos aos jornalistas. Este cenário tende a provocar uma super abundância de informação, uma espiral vertiginosa até à náusea.
Num artigo no jornal Público, Paula Torres de Carvalho escrevia que se tem vindo a assistir cada vez mais na sociedade portuguesa ao fenómeno do “jornalismo de matilha” (pack journalism). Aponta para a concentração dos jornalistas nos mesmos locais e às mesmas horas para os mesmos acontecimentos marcados pelas mesmas agendas oficiais, entrevistando as mesmas pessoas, destacando os mesmos assuntos e optando pelo mesmo ângulo da notícia. Não raras as vezes, indica a autora, questionam entre si qual o lead que vão avançar para a notícia, seja a seguir a um julgamento, a uma audiência na Assembleia da República ou na sequência de uma conferência de imprensa num qualquer ministério. A necessidade de dar “a” notícia o mais rapidamente possível, assente nesta cultura profissional cronometrizada, deu o seu contributo para que se discuta entre os pares quais os pontos que se devem salientar no relato informativo, sendo que a relevância nas fontes oficiais, que subjaz a uma ideia pré-concebida de credibilidade e autenticidade, sobrepõe-se muitas vezes a outras fontes incapazes de
garantir novos e significativos elementos. Daí, em grande medida, a proximidade ao poder, num jogo que interessa a quem quer ser notícia e a quem quer informar.
Relativamente ao mimetismo mediático, numa referência à realidade portuguesa, assinale-se o estudo de Dinis Alves (2010) e algumas das suas ideias principais. Numa análise empírica, decorrida em 1999, pondo em evidência uma investigação aos telejornais das quatros estações televisivas nacionais (RTP1, 2, SIC e TVI), os espaços informativos da TSF, Antena 1 e Renascença e os jornais diários dos mesmos períodos, Dinis Alves conclui que cerca de 71% da matéria noticiada dos telejornais do período da noite são temas que foram anteriormente tratados pelos outros media. Para além disso, os mesmos são apresentados sem aprofundamento, sem qualquer novidade ou pesquisa adicional. Em suma, a televisão emerge como mostra de outras agendas, pondo a nu todo um conjunto de estratégias burocráticas e rotinas do processo de produção diária da informação.
Naturalmente que se pressupõe que o jornalismo, no contexto de uma sociedade livre, informe os cidadãos e forneça uma plataforma de diálogo e de debate sobre a vida social, política, económica e cultural do nosso tempo. O jornalismo é um elemento estruturante das nossas democracias. Faz sentido que, entre outras coisas, a candidatura do ministro Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo (entretanto já eleito), bem como a viagem do Papa Francisco (simultaneamente líder da Igreja Católica e chefe de Estado do Vaticano) à Ásia sejam alvo da atenção mediática. Divulgar e compreender as iniciativas dos detentores do poder, seja ele qual for, é algo intrínseco ao campo jornalístico. Contudo, é necessário questionar, fazer a pergunta certa, procurar outros ângulos da notícia, ir mais além e não cair, como tantas vezes temos assistido, num (certo) facilitismo, perseguindo as mesmas visões do que se passa, copiando as mesmas abordagens que, aqui e ali, pouco ou nada acrescentam ou esclarecem. A perspectiva de uma socialização profissional eficaz, que mencionámos atrás, vai ao encontro disso mesmo: veja-se a quantidade de peças jornalísticas (na imprensa, rádio e televisão) com títulos semelhantes, a mesma estrutura e dimensão, a aposta nos mesmos enquadramentos (frames) e a mesma selecção de citações e soundbites. É uma constatação diária. Os exemplos atrás descritos revelam isso mesmo.
Como apontamento final desta breve reflexão, e não obstante cada vez mais vermos a televisão por via de novos suportes e assumirmos novos hábitos, remetendo para as conclusões nos estudos de Goulart Brandão e Dinis Alves aqui destacadas, é importante que a televisão, tantas vezes descrita como “uma janela aberta para o
mundo”, não se torne, ela própria, numa “fábrica de silêncio”. Ou seja, que outras vozes, outras fontes e outros temas adquiram outra visibilidade e um outro protagonismo, acentuando outras dimensões da vida comunitária. Seguramente que hoje tudo o que se tornou viral graças às redes sociais encontrou uma dimensão expressiva nos media tradicionais e isso não pode deixar de ser assinalado. Mas é de pluralismo que falamos: assegurar que outros têm espaço e voz no espaço público mediatizado, independentemente do peso e da sua ligação ao poder instituído, tantas vezes “contaminado” pelo discurso de comentadores, com a respectiva ligação a interesses instalados, e que potenciam toda essa estrutura circular da informação (de que o mimetismo mediático é exemplo), que pouco se coaduna com a consolidação de uma democracia deliberativa e transparente.
Bibliografia consultada
Alves, D. (2010). Terceiro Mundo em Notícias – Em Directo do Inferno. Coimbra: Mar da Palavra.
Alves, D. (2010). Promoções, Silêncios, Desvirtuações na TV – A informação ao serviço da estação. Coimbra: Mar da Palavra.
Boorstin, D. J. (1992). The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. Vintage. Brandão, N.G. (2002). O espectáculo das notícias. A televisão generalista e a abertura dos telejornais. Lisboa: Editorial Notícias.
Carvalho, P. T. (2010). Contra o “jornalismo de matilha”. Público, 14 de Agosto de 2010. https://www.publico.pt/2010/08/14/jornal/contra-o-jornalismo-de-matilha- 20006937 (Acesso: 05/12/2017).
Dayan, D. & Katz, E. (1994). Media Events: The Live Broadcasting of History. Harvard: Harvard University Press.
Gonçalves, V. (2005). Nos bastidores do jogo político: o poder dos assessores. Coimbra: MinervaCoimbra.
McCombs, M & Shaw, D. (1972). The agenda-setting function of mass media. Public Opinion Quarterly, vol. 36(2).
Molotch, H. & Lester, M. (1974). News as purposive behavior: on the strategic use of routine events, accidents, and scandals. American Sociological Review, vol. 39(1). Ramonet, I. (1999). A tirania da comunicação. Porto: Campo das Letras.
Sigal, L. (1973). Reporters and Officials: Organization and Politics of Newsmaking. Houghton Mifflin Harcourt.